quinta-feira, 6 de junho de 2013

Indesejáveis: Instituição, pensamento político e formação profissional dos Oficiais do Exército brasileiro (1905-1946)




A leitura do livro “Indesejáveis” do historiador Fernando da Silva Rodrigues, deveria ser, sem dúvida nenhuma, indicada para todas àquelas pessoas que estudam temas relacionados a concepções elitistas e discriminatórias preeminentes entre os grupos que dirigiam o nosso país na primeira metade do século XX.

Fernando Rodrigues, doutor em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), após analisar e investigar minuciosamente, cerca de, 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército constatou que os regulamentos e normas internas das Instituições de Ensino Superior Militar, foram sistematicamente alteradas, e tinham por finalidade selecionar para os quadros de Oficiais do Exército brasileiro elementos cujo perfil estivessem relacionados às concepções nazi-fascitas, então em alta no continente europeu, entre os anos de 1925 e 1946.

O autor, muito apropriadamente, denuncia práticas seletivas para os candidatos às Escolas Militares, contraditórias a própria formação da sociedade brasileira, cuja miscigenação racial é fato visível e indiscutível. Práticas estas que visavam fazer da oficialidade brasileira uma camada social pura de máculas morais ou espirituais, que segundo alguns comandantes do Exército, estariam enraizadas em determinados grupos étnicos, sociais e religiosos considerados, por eles, como sendo inferiores.

Graças ao não cumprimento da ordem dada pelo então ministro e posteriormente presidente da República, o General Eurico Gaspar Dutra, para que as fichas e os documentos dos candidatos não aprovados fossem incinerados após dois anos, é que hoje em dia podemos entender um período da nossa história, tão bem analisado pelo historiador e autor do livro, Fernando Rodrigues. Além dessas fichas, também foram objeto da pesquisa as correspondências trocadas entre o General Góes Monteiro, então Ministro da Guerra, e o General José Pessoa, Comandante da Escola Militar, e que sucintamente passaremos a descrever nos próximos parágrafos.

O autor nos relata que após 1930, o modelo político adotado no Brasil caracterizou-se pelo intervencionismo estatal, que culminou com a instalação, em 1937, pelo presidente Getúlio Vargas, do Estado Novo. Esse regime profundamente autoritário e de concepções racistas e antissemitas, utilizou padrões discriminatórios na formação das elites institucionais brasileiras.

Podemos notar o caráter extremamente discriminatório nas Fichas Individuais dos candidatos a uma vaga na Escola Militar, que a partir do ano de 1938, além das informações pertinentes aos candidatos e seus pais, passou também a limitar o acesso de filhos de pais desquitados; de jovens de origem modesta; daqueles cuja cútis não fosse branca; pela falta de religião ou daqueles que não professassem a religião Católica; ou de pessoas que possuíssem um sobrenome que indicasse uma nacionalidade considerada indesejável para aquele momento histórico que o Brasil estava vivendo.

Começando a relacionar as formas discriminatórias para o ingresso na Escola de Formação de Oficiais, destacamos o primeiro item: ser brasileiro nato, já deixava claro que não seriam aceitos estrangeiros ou mesmo pessoas naturalizadas, por serem considerados estranhos aos interesses do Exército e do novo Estado. Também, o valor da taxa de inscrição a ser paga restringia um grande número de candidatos pertencentes às classes sociais mais baixas.

Mais a frente, o autor nos revela que na Escola Militar havia uma rigorosíssima sindicância cuja finalidade era a de apurar quais dos alunos matriculados eram portadores de marcas raciais consideradas negativas ou desonrosas, ideologias relativas à prática do judaísmo ou simpatizantes das doutrinas comunistas, condições estas que, no entendimento dos comandantes, incompatibilizava os alunos com o cumprimento irrestrito das obrigações da carreira militar.

Ainda, segundo Rodrigues, mesmo os filhos de estrangeiros nascidos no Brasil e, portanto brasileiros natos, estavam excluídos da seleção, visto que “recebiam influência da cultura paterna, e ficavam fiéis ao fanatismo das suas ideologias ou suas seitas de caráter social, político ou religioso”.

O autor descreve como o General Eurico Gaspar Dutra considerava os judeus. Ele se referia a eles como sendo uma “raça desradicada a terra, desfeita por credo e sentimentos à noção objetiva de pátria tal qual era concebida, não teriam seus membros as credenciais para o exercício da profissão militar”.

O Ministro da Guerra determinou que a seleção preliminar dos concorrentes à matrícula, tanto na Escola Militar, quanto na Escola Preparatória de Cadetes, fossem observadas com extremo rigor determinadas condições fundamentais para qualquer candidato, que deveriam obrigatoriamente ser: brasileiros natos e filhos e brasileiros também natos; pertencerem à família organizada e de bom conceito; serem física e mentalmente sadios; não serem de cor e não serem – nem seus pais – judeus, maometanos ou ateus confessos. Portanto qualquer um dos preceitos acima que não fossem cumpridos, seriam considerados inaptos para formar os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação brasileira, e a ficha dos rejeitados levava um “arquive-se”.

Fernando Rodrigues expõe uma série de gráficos e análises detalhadas referentes aos processos individuais para a seleção da Escola Militar, através da coleta e análise de dados de pesquisas empíricas em diversos anos e sobre diversos aspectos, que contribuem demais para o bom entendimento dos fatos.

Ele também constatou que em algumas fichas a fotografia do candidato está circulada em vermelho. Determinado candidato foi inicialmente considerado inapto pelo motivo de ter sido classificado como sendo negro através da sua fotografia, porém o Chefe da Comissão, revendo o caso, considerou-o apto ao verificar que em sua certidão de nascimento constava como sendo branco. Nos anos posteriores, tal fato não ocorreria mais, pois a verdade absoluta ficaria a cargo da realidade, daquilo que se vê e não daquilo que se lê.

Filhos de mães solteiras e filhos ilegítimos de origem menos favorecidas, justificavam a inaptidão para a carreira de oficial. Apesar da situação de pais desquitados ser fator de reprovação e exclusão para a aprovação dos candidatos ao oficialato, havia, em alguns casos, dois pesos e duas medidas, e dependendo de quem o candidato fosse filho, tinha garantido o seu ingresso nas Escolas Militares.

A profissão dos pais dos candidatos também pesava na sua escolha, e segundo Rodrigues, aqueles que não fossem filhos de uma “boa sociedade” eram alijados nos processos seletivos. Num desses casos, o autor nos revela que um rapaz, filho de italianos, foi considerado inapto, principalmente por sua origem social: o pai tinha uma banca de jornal e o padrasto vendia peixe no mercado e nas feiras livres, ou seja, sem significação social. Nota-se aqui que havia um projeto político de elitização da força.

Conclui-se, após a leitura deste livro impar e de caráter inédito, merecedor de ser encontrado nas maiores e melhores bibliotecas, que as medidas tomadas para impedir o acesso de pessoas negras nas Escolas Militares se enquadram no processo de eugenia, segundo o qual o negro era de uma “raça inferior”, e o grande responsável pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro, não sendo por isso, admissível seu ingresso ao oficialato. Filhos de estrangeiros, de mães solteiras, de pais desquitados ou oriundos de famílias menos abastadas também não eram recomendados ao oficialato.

Num contexto internacional, cujo modelo e exemplo vinham da Europa branca, elitista e eugênica, e cujo nacionalismo crescente em nosso país estava vinculado às práticas discriminatórias e racistas, os ideais liberais acabaram sendo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais, e conforme nos diz Rodrigues: “neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional”.