domingo, 29 de junho de 2014

O nome e a coisa: o populismo na política brasileira.





A leitura do texto “O nome e a coisa: o populismo na política brasileira”, do historiador Jorge Ferreira, remete-nos a um período da historiografia brasileira que se inicia no governo de Getúlio Vargas e prolonga-se por várias décadas, de uma prática que ficou conhecida vulgarmente como “populismo”.

Podemos constatar, após a leitura do texto, que a fase emergente do populismo no Brasil se localiza entre a década de 30 do século XX, estendendo-se até a década de 60 do mesmo século, momento em que se evidenciou a falência desse modelo.

O autor procura não apenas compreender o período que vai de 1930 até 1964, momento de efervescência do populismo, como também interpretar a evolução desse conceito ao longo do tempo para poder explicar a política praticada durante sua vigência.

Segundo Jorge Ferreira, o populismo é herdeiro do clientelismo presente durante a nossa Primeira República, que se perpetuou por causa das desigualdades existentes entre o Estado e a sociedade. Numa sociedade agrária como era a nossa, tornou-se tarefa fácil, sobretudo durante a ditadura de Getúlio Vargas, atrair os trabalhadores originários do campo e das pequenas comunidades rurais, quando da sua chegada às grandes cidades, a aceitarem os agrados de Vargas e a se submeterem à sua obediência política.

Como bem diz o autor, foi diagnosticado pelos intelectuais liberais e autoritários, não importando se de esquerda ou de direita, que os males do nosso país provinham de uma relação desigual, despojada de reciprocidade e interlocução, uma sociedade civil que não era capaz de se auto-organizar e de uma classe trabalhadora debilitada, a qual se impõe um Estado que, com eficazes mecanismos de persuasão e de repressão é capaz de manipular, cooptar e corromper esses mesmos trabalhadores.

Segundo a chamada “teoria da modernização”, surgida nos meios acadêmicos entre os anos de 1950 e 1960, na passagem de uma sociedade tradicional para uma moderna ocorreu um processo acelerado de urbanização e industrialização que mobilizou as “massas populares”. Intelectuais e sociólogos, que se reuniram e formaram o chamado Grupo de Itatiaia, acreditaram ser o populismo uma política de massas, um fenômeno ligado a modernização da sociedade e, principalmente, ao processo de proletarização dos trabalhadores que eram desprovidos de consciência de classe, tendendo a se comportar de acordo com seus interesses pessoais.

O autor menciona as críticas formuladas pelo sociólogo Guerreiro Ramos, integrante do Grupo de Itatiaia, que classifica com ironia o trabalhismo brasileiro como portador de “doenças infantis”. A primeira delas seria o varguismo, que segundo suas palavras, seriam de um “resíduo emocional baseado nas impressões e crenças populares na bondade intrínseca de Vargas. A segunda é o janguismo, através da qual João Goulart é o continuador da obra de Getúlio Vargas. A terceira seria o peleguismo, que na sua definição é um subproduto do varguismo e irmão siamês do janguismo.

Segundo Werneck Vianna, em substituição à força revolucionária do anarquismo da década de 10, o novo proletário da década de 30 se tornaria massa de manobra do populismo, que substitui o marxismo no movimento operário pelo nacionalismo exultante do Presidente Getúlio Vargas.

Nesse sentido, segundo Weffort, o sucesso da política de Vargas entre os trabalhadores se deve porque o êxodo rural trouxe para as cidades uma mão de obra individualista, patrimonialista e sem experiência de lutas sindicais, que faz com que esses trabalhadores vejam na pessoa do líder o projeto do Estado, entregando-se a ele, à sua direção e, em grande parte, ao seu arbítrio, acabando por serem usados como massa de manobra.

Jorge Ferreira afirma que no primeiro governo de Getúlio Vargas, em troca dos direitos sociais alcançados, os trabalhadores abriram mão dos direitos políticos, recebendo passivamente e sem críticas a doutrinação política do Estado, passando a idolatrar Vargas, a eleger outros líderes populistas e a votar no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Na passagem dos anos 70 para a década de 80, o autor afirma que a primeira versão do populismo começou a dar mostras de esgotamento em suas teorias centrais, não satisfazendo mais os estudiosos do tema.

Conforme o autor, houve uma recusa parcial das hipóteses centrais da primeira versão do populismo, visto que o texto que serviu de base anteriormente, O populismo na política brasileira, de Weffort, continuava a ser mencionado nos textos naquele período.

Sendo assim, Ferreira afirma que a “versão mais disseminada defendeu que a possibilidade da mudança provém da capacidade dos trabalhadores de alcançarem a verdadeira consciência de classe, de desvendarem as contradições sociais, de perceberem quais os seus reais interesses”.

De acordo com o autor, na primeira versão, os assalariados se beneficiavam com as políticas públicas do Estado varguista, em especial com a sua legislação social, porém na segunda versão, não mais houve essa consideração. A repressão policial e a propaganda política tornaram-se os pilares centrais para a compreensão do sucesso de Vargas entre os trabalhadores.

Entretanto, a partir dos anos 80 diversos trabalhos sobre o Estado Novo surgem, e contribuem para o melhor entendimento e compreensão daquele momento histórico e emblemático pelo qual passou o nosso país.

O autor afirma que habilmente o governo de Getúlio Vargas teria feito com que as pessoas acreditassem em crenças e valores baseados na mentira, na ilusão, na deformação ou inversão da realidade. Com o auxilio do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o Estado varguista encheu a sociedade com imagens e símbolos de exaltação ao seu governo, utilizando para isso programas de rádio, filmes cinematográficos, livros, periódicos, biografias, cartilhas escolares, músicas, festas populares e comemorações cívicas, entre outras, tendo assim, o Estado populista alcançado grande sucesso, e aceito como legítimo pelos trabalhadores.

Diversos historiadores, no início da década de 1980, comparam a experiência varguista com os regimes totalitários de Hitler e Stálin. Vargas passou a ser definido como um líder totalitário. Essa teoria sociológica do totalitarismo acabou por seduzir inúmeros historiadores brasileiros, muito embora os especialistas da história do socialismo, tanto no Brasil como no exterior, recusem tal expressão, que acabou por gerar algumas polêmicas.

O populismo tem sido ressaltado como sendo uma via de mão única, imposto de cima para baixo, porém segundo Jorge Ferreira, apreender a sociedade como sendo vítima indefesa, é atribuir a culpa da falta de cidadania apenas ao Estado, o que não condiz com a realidade dos fatos.

Já quase no final do seu texto, o autor nos indaga sobre quem “inventou” o populismo. Segundo suas palavras, “populismo” e “populista” não estavam disponíveis no vocabulário político e no dia a dia do país durante o primeiro governo de Getúlio Vargas.

Ainda segundo o autor, a partir de 1945 até 1964, as palavras foram surgindo muito lentamente com o passar dos anos. Além de serem pouco utilizadas nos jornais, quando apareciam não tinham como objetivo escarnecer, desmerecer ou insultar o adversário, e quando eram pronunciadas tinham um significado diferente daquele que conhecemos nos dias de hoje. Ele menciona que nas poucas ocasiões em que Getúlio Vargas e João Goulart eram chamados de líderes “populistas”, a expressão era tida como elogiosa, não sendo considerada como ofensiva. 

Levando-se em consideração a afirmação acima, podemos acreditar que naquela época ser um líder “populista”, tanto na visão dos trabalhadores quanto na de seus adversários, não expunha e nem descrevia um político que se utilizava de recursos tais como: a demagogia, a mentira ou a manipulação para obter proveito em seu favor ou de seus correligionários.

Percebemos, pelas informações do autor, que as violentas críticas dirigidas pela imprensa a Getúlio Vargas e a João Goulart, encobriam os verdadeiros personagens que se queriam atingir: os trabalhadores e o movimento sindical.

Avançando no tempo, após tantas interpretações sobre o “populismo”, surge na década de 90 a terceira geração do populismo, que segundo Jorge Ferreira, agora foi rebatizado de “neopopulismo”, que pode ser definido como sendo a personalização e autonomia do poder executivo, conciliação de classes e ideal da Nação.

Jorge Ferreira relata-nos um episódio ocorrido no mês de agosto de 1998, no discurso pronunciado pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em uma favela no Rio de Janeiro, ele disse conhecer as dificuldades pelas quais os favelados passavam e que não adiantava prometer o que não iria fazer. Afirmou ele, na ocasião, que não dava para transformar todas as pessoas do mundo em ricos, e que nem sabia se valeria a pena, já que a vida de rico em geral era muito chata. 

Ainda segundo o autor, no final do comício, o presidente acompanhado de políticos conservadores foi almoçar no Iate Clube. Durante o almoço os presentes ouviram do presidente referências negativas a seus concorrentes, em particular a Luís Inácio Lula da Silva: “Se por alguma catástrofe, o que não vai ocorrer, se elegesse um populista, nem ele seria capaz de fazer o que diz que vai fazer, porque o povo repudiaria imediatamente”. Criticou, ainda, as pessoas que pregam soluções “facilitárias, mirabolantes, de populismo barato”. Para ele “o Brasil amadureceu: não há mais caminho do passado”. No dia seguinte, reavaliando suas declarações na favela, ele se justificou declarando: “Eu sou professor, sou pobre”. Moral da história: Populista é sempre o outro, nunca o mesmo.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Indesejáveis: Instituição, pensamento político e formação profissional dos Oficiais do Exército brasileiro (1905-1946)




A leitura do livro “Indesejáveis” do historiador Fernando da Silva Rodrigues, deveria ser, sem dúvida nenhuma, indicada para todas àquelas pessoas que estudam temas relacionados a concepções elitistas e discriminatórias preeminentes entre os grupos que dirigiam o nosso país na primeira metade do século XX.

Fernando Rodrigues, doutor em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), após analisar e investigar minuciosamente, cerca de, 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército constatou que os regulamentos e normas internas das Instituições de Ensino Superior Militar, foram sistematicamente alteradas, e tinham por finalidade selecionar para os quadros de Oficiais do Exército brasileiro elementos cujo perfil estivessem relacionados às concepções nazi-fascitas, então em alta no continente europeu, entre os anos de 1925 e 1946.

O autor, muito apropriadamente, denuncia práticas seletivas para os candidatos às Escolas Militares, contraditórias a própria formação da sociedade brasileira, cuja miscigenação racial é fato visível e indiscutível. Práticas estas que visavam fazer da oficialidade brasileira uma camada social pura de máculas morais ou espirituais, que segundo alguns comandantes do Exército, estariam enraizadas em determinados grupos étnicos, sociais e religiosos considerados, por eles, como sendo inferiores.

Graças ao não cumprimento da ordem dada pelo então ministro e posteriormente presidente da República, o General Eurico Gaspar Dutra, para que as fichas e os documentos dos candidatos não aprovados fossem incinerados após dois anos, é que hoje em dia podemos entender um período da nossa história, tão bem analisado pelo historiador e autor do livro, Fernando Rodrigues. Além dessas fichas, também foram objeto da pesquisa as correspondências trocadas entre o General Góes Monteiro, então Ministro da Guerra, e o General José Pessoa, Comandante da Escola Militar, e que sucintamente passaremos a descrever nos próximos parágrafos.

O autor nos relata que após 1930, o modelo político adotado no Brasil caracterizou-se pelo intervencionismo estatal, que culminou com a instalação, em 1937, pelo presidente Getúlio Vargas, do Estado Novo. Esse regime profundamente autoritário e de concepções racistas e antissemitas, utilizou padrões discriminatórios na formação das elites institucionais brasileiras.

Podemos notar o caráter extremamente discriminatório nas Fichas Individuais dos candidatos a uma vaga na Escola Militar, que a partir do ano de 1938, além das informações pertinentes aos candidatos e seus pais, passou também a limitar o acesso de filhos de pais desquitados; de jovens de origem modesta; daqueles cuja cútis não fosse branca; pela falta de religião ou daqueles que não professassem a religião Católica; ou de pessoas que possuíssem um sobrenome que indicasse uma nacionalidade considerada indesejável para aquele momento histórico que o Brasil estava vivendo.

Começando a relacionar as formas discriminatórias para o ingresso na Escola de Formação de Oficiais, destacamos o primeiro item: ser brasileiro nato, já deixava claro que não seriam aceitos estrangeiros ou mesmo pessoas naturalizadas, por serem considerados estranhos aos interesses do Exército e do novo Estado. Também, o valor da taxa de inscrição a ser paga restringia um grande número de candidatos pertencentes às classes sociais mais baixas.

Mais a frente, o autor nos revela que na Escola Militar havia uma rigorosíssima sindicância cuja finalidade era a de apurar quais dos alunos matriculados eram portadores de marcas raciais consideradas negativas ou desonrosas, ideologias relativas à prática do judaísmo ou simpatizantes das doutrinas comunistas, condições estas que, no entendimento dos comandantes, incompatibilizava os alunos com o cumprimento irrestrito das obrigações da carreira militar.

Ainda, segundo Rodrigues, mesmo os filhos de estrangeiros nascidos no Brasil e, portanto brasileiros natos, estavam excluídos da seleção, visto que “recebiam influência da cultura paterna, e ficavam fiéis ao fanatismo das suas ideologias ou suas seitas de caráter social, político ou religioso”.

O autor descreve como o General Eurico Gaspar Dutra considerava os judeus. Ele se referia a eles como sendo uma “raça desradicada a terra, desfeita por credo e sentimentos à noção objetiva de pátria tal qual era concebida, não teriam seus membros as credenciais para o exercício da profissão militar”.

O Ministro da Guerra determinou que a seleção preliminar dos concorrentes à matrícula, tanto na Escola Militar, quanto na Escola Preparatória de Cadetes, fossem observadas com extremo rigor determinadas condições fundamentais para qualquer candidato, que deveriam obrigatoriamente ser: brasileiros natos e filhos e brasileiros também natos; pertencerem à família organizada e de bom conceito; serem física e mentalmente sadios; não serem de cor e não serem – nem seus pais – judeus, maometanos ou ateus confessos. Portanto qualquer um dos preceitos acima que não fossem cumpridos, seriam considerados inaptos para formar os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação brasileira, e a ficha dos rejeitados levava um “arquive-se”.

Fernando Rodrigues expõe uma série de gráficos e análises detalhadas referentes aos processos individuais para a seleção da Escola Militar, através da coleta e análise de dados de pesquisas empíricas em diversos anos e sobre diversos aspectos, que contribuem demais para o bom entendimento dos fatos.

Ele também constatou que em algumas fichas a fotografia do candidato está circulada em vermelho. Determinado candidato foi inicialmente considerado inapto pelo motivo de ter sido classificado como sendo negro através da sua fotografia, porém o Chefe da Comissão, revendo o caso, considerou-o apto ao verificar que em sua certidão de nascimento constava como sendo branco. Nos anos posteriores, tal fato não ocorreria mais, pois a verdade absoluta ficaria a cargo da realidade, daquilo que se vê e não daquilo que se lê.

Filhos de mães solteiras e filhos ilegítimos de origem menos favorecidas, justificavam a inaptidão para a carreira de oficial. Apesar da situação de pais desquitados ser fator de reprovação e exclusão para a aprovação dos candidatos ao oficialato, havia, em alguns casos, dois pesos e duas medidas, e dependendo de quem o candidato fosse filho, tinha garantido o seu ingresso nas Escolas Militares.

A profissão dos pais dos candidatos também pesava na sua escolha, e segundo Rodrigues, aqueles que não fossem filhos de uma “boa sociedade” eram alijados nos processos seletivos. Num desses casos, o autor nos revela que um rapaz, filho de italianos, foi considerado inapto, principalmente por sua origem social: o pai tinha uma banca de jornal e o padrasto vendia peixe no mercado e nas feiras livres, ou seja, sem significação social. Nota-se aqui que havia um projeto político de elitização da força.

Conclui-se, após a leitura deste livro impar e de caráter inédito, merecedor de ser encontrado nas maiores e melhores bibliotecas, que as medidas tomadas para impedir o acesso de pessoas negras nas Escolas Militares se enquadram no processo de eugenia, segundo o qual o negro era de uma “raça inferior”, e o grande responsável pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro, não sendo por isso, admissível seu ingresso ao oficialato. Filhos de estrangeiros, de mães solteiras, de pais desquitados ou oriundos de famílias menos abastadas também não eram recomendados ao oficialato.

Num contexto internacional, cujo modelo e exemplo vinham da Europa branca, elitista e eugênica, e cujo nacionalismo crescente em nosso país estava vinculado às práticas discriminatórias e racistas, os ideais liberais acabaram sendo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais, e conforme nos diz Rodrigues: “neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional”.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O termo Pré-História


Até os dias de hoje ainda utilizamos uma divisão reconhecida pela Historiografia mais tradicional, que foi resultante de uma percepção política da Europa do século XIX, que definiu a divisão da História em cinco “Idades” distintas: Pré-História, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Portanto, torna-se inegável a influência do eurocentrismo na nossa formação.

Nas enciclopédias e dicionários o termo “Pré-História” é definido como sendo o período anterior à existência de registros escritos. Ela está dividida em Idade da Pedra (Paleolítico, Mesolítico e Neolítico), Idade do Bronze e Idade do Ferro. Sendo uma das fontes de evidências sobre as sociedades pré-históricas a Arqueologia.

Considerando-se que a Pré-História abrange o período da história dos seres humanos em que a escrita ainda não havia sido concebida, sendo que este fato ocorreu por volta de 4000 aC, podemos verificar que a pré-história é o maior período da história da humanidade e, que numa escala temporal, abrange cerca de 95% do tempo total do surgimento dos primeiros hominídeos que se tem conhecimento, ou seja, há cerca de 4,5 milhões de anos atrás.

Segundo as palavras de Lucien Febvre: “A história faz-se, sem dúvida, com documentos escritos. Quando os há. Mas pode fazer-se, deve fazer-se, sem documentos escritos, se estes não existirem”. Portanto a afirmação de muitos historiadores de que a denominação “Pré-História” é equivocada, está corretíssima, visto não existir uma anterioridade à História, mas sim ao surgimento da escrita, além de que tudo o que existe, faz e tem uma história, independente dela ser registrada ou não.

Quando ainda não existia um sistema de escrita, através do qual as pessoas pudessem transmitir a sua história, elas tinham de guardar na memória uma grande quantidade de coisas e transmiti-las oralmente para as gerações futuras. Podemos imaginar o quanto era difícil e nada prático tal situação.

Para os antigos mercadores deveria ser um grande transtorno controlar os estoques e as entregas sem poder anotar os pedidos, por tudo isso, tal necessidade deve ter sido o fator principal para que os sumérios, moradores da região onde se localiza hoje o Iraque tenham inventado a linguagem escrita.

Como mencionado acima, acredita-se que a escrita, a maior inovação da civilização urbana, surgiu da necessidade de se registrar as transações comerciais. Temos informações que os primeiros textos encontrados na Mesopotâmia, e que retrocedem ao 4º milênio antes de Cristo, são recibos que representam apenas símbolos e números.

A escrita cuneiforme, surgida na suméria, era feita com pequenos bastões de junco pelos escribas em pequenas placas de argila molhada com cortes em forma de cunha. Depois de gravadas, as placas de argila eram expostas ao sol para secar. Estes escribas tornaram-se os guardiões dos templos-arquivos, responsáveis pelas bibliotecas de placas de barro onde eram anotados os detalhes das finanças do templo.

Se compararmos as formas da escrita moderna com a escrita cuneiforme, poderemos constatar a dificuldade desses traçados, porém eles significaram um avanço real na vida cotidiana. A escrita cuneiforme passou a ser utilizada além dos interesses comerciais, também para conservar tradições religiosas, que logo passaram a constituir os livros sagrados, registrar costumes socais e códigos legais, transmitir mitos e histórias, que originaram a História e a Literatura.

Pouco tempo depois surgiu uma escrita pictográfica, ou seja, as figuras representavam as palavras que se queriam exprimir, e com o passar do tempo os símbolos passaram a ser usados para indicar sons.

Certamente, a escrita foi uma das mais grandiosas invenções humanas. Com o surgimento dela foram fechadas as cortinas da “pré-história” e deu-se início à história da humanidade como alguns preferem se referir.

Sem dúvida, a escrita é um elemento fundamental de todas as civilizações evoluídas, pois foi através dela que a comunicação foi facilitada e se tornou compreensível. Através dela viabilizou-se o sentido cumulativo do conhecimento humano ao tornar possível o registro de informações dos mais diversos.

Com a criação da escrita, o homem passou a registrar sua história, escrevendo sobre o seu dia a dia, redigindo documentos e compondo suas narrativas e epopéias, porém não podemos deixar de lembrar que tão valiosa quanto à invenção da escrita foi a medição do tempo e a criação do calendário.

Pela definição de Luiz Koshiba: a escrita é utilizada como critério para distinguir a História da Pré-História, sem que isso implique um juízo de valor; o seu domínio não torna as sociedades históricas necessariamente superiores às pré-históricas. Ela deve isso sim, ser vista como manifestação de uma profunda transformação das sociedades humanas.

Ao invés do termo “Pré-História”, usado para designar o período anterior a criação da escrita, poderia ser utilizada a expressão: “Primórdios da História”, ficando aqui registrada, por escrito, a minha sugestão.

Homem, sociedade e cultura


Até o século XIX era opinião comum entre os estudiosos que a espécie humana havia surgido na face da Terra há poucos milhares de anos. Considerava-se para tal, que Deus criara o homem pouco tempo antes do início da História, ou seja, aproximadamente 5 mil anos, através dos documentos escritos dos sumérios e egípcios.

Através de numerosas e exaustivas escavações, os arqueólogos e os paleontólogos estabeleceram que a Terra foi colonizada pelo Homo Sapiens e que todas as pessoas tem raízes ancestrais na chamada “Eva Africana” ou “Eva Mitocondrial” cuja existência presume-se ser de 150 mil anos atrás. Esse nome advém do fato do DNA mitocondrial ter sido passado pela mãe para os seus descendentes em todas as gerações.

Logo, sabemos que a África foi o ponto de partida e, que todo ser humano atual é descendente de um pequeno grupo de homens modernos que deixando o continente africano, por volta de 60 mil anos atrás passaram a se espalhar e a explorar o nosso planeta.

Apesar de ainda viverem como caçadores-coletores, alguns desses grupos começaram, há aproximadamente 12 mil anos atrás, a dominar os recursos alimentares através da agricultura. Esses grupos perceberam que sementes germinavam quando eram jogadas na terra. Segundo o historiador Edward M. Burns, não se pode determinar com exatidão onde se originou a agricultura e, que as gramíneas bravas, prováveis antepassados dos cereais, foram encontradas em numerosos lugares.

Foi grande a transformação operada nas condições humanas pelo surto da agricultura, afirma H. G. Wells: “antes da agricultura, o homem era um errante animal de preia que usava instrumentos, um animal selvagem e relativamente raro sobre a superfície da terra. Vivia em pequenos grupos e suas únicas posses eram os objetos que conduzia”.

Depois que as plantas passaram à tutela do homem e a produção cresceu, parte do excedente obtido passou a ser usado na alimentação dos animais. A agricultura e a criação de animais contribuíram para o surgimento de pequenos agrupamentos de caçadores-coletores que acabaram por originar as primeiras comunidades agrárias de habitações feitas de tijolos de que se tem conhecimento.

É bem verdade que as primeiras vilas agrícolas constituíam-se de caóticos amontoados de casas de tijolos de barro, separadas por estreitos espaços entre elas, porém o inicio da atividade agrícola provocou a reorganização do que podemos classificar como as primeiras sociedades. Esses assentamentos permanentes e os novos estilos de vida contribuíram para o estabelecimento das primeiras comunidades sedentárias e o início da religião e do culto.

O barro onipresente das planícies aluviais do sul da Mesopotâmia foi o material com que se construiu a primeira civilização do mundo. Era moldado em blocos retangulares de tamanho uniforme, não era usado apenas na construção de casas e muros, com o barro molhado e cozido produziam-se utensílios para cozinhar e armazenar alimentos e, as figurinhas de argila, encontradas pelos arqueólogos, de seres humanos e animais, representavam as imagens que os primeiros escultores tinham do mundo ao seu redor.

Visto ser o homem um ser social, este procurou constituir um lar onde pudesse contar com o apoio necessário para sobreviver. Portanto, uma das mais antigas e importantes instituições humanas é a família.

Com a constituição da família e o consequente surgimento de novas mãos para o trabalho agrícola surgiu a necessidade de se fabricar potes para armazenar os excedentes produzidos. O artesanato de potes e vasilhas, em grande parte, era obra das mulheres. Além da cerâmica, a fabricação de tecidos, usando-se o linho, a lã e o algodão eram de iniciativa do sexo feminino. Para os homens competiam as tarefas de caçar, pescar, cuidar dos rebanhos, confeccionar ferramentas e armas e preparar os campos para o cultivo.

O trabalho era realizado coletivamente tanto homens como por mulheres, porém a mulher tinha um papel de extrema importância para a sobrevivência da comunidade: ela era responsável pelo nascimento de novos membros que fariam aumentar o número de habitantes.

Por volta de 4000 aC, a vida nas aldeias estava fortemente consolidada no sudoeste e no leste da Ásia. Comunidades agrícolas se ampliaram e se organizaram. Na medida em que as aldeias cresciam e se tornavam mais complexas, eram estabelecidas novas formas de comunicação entre os membros da comunidade e os de outras regiões.

Existem grandes variedades de culturas humanas, cada uma com a sua forma de organização que lhe é peculiar. Em comparação com as eventuais alterações biológicas do homem, na sua história, as culturas assumem formas variadas e se alteram com grande rapidez. As culturas se diversificam, enriquecem, acumulam e tornam-se complexas, assim como também podem se extinguirem ou serem extintas.

Brasil e seu passado (pré) histórico


O Brasil não tem pré-história, o Brasil tem história anterior ao seu descobrimento. Segundo os cientistas, continua sendo difícil estabelecer uma história coerente sobre a (pré) história do Brasil. Além do amplo período de tempo, que poderá se estender até 50 mil anos, a área de pesquisa é muito vasta estendendo-se da Amazônia até os Pampas Gaúchos e do Nordeste ao nosso Pantanal.

Estudiosos e especialistas, em sua maioria, norte-americanos, afirmavam até o final dos anos 90 que a ocupação do continente americano era compatível com o denominado “Modelo Clovis”, ou seja, que o homem teria ocupado as terras americanas há não mais de 11.400 anos.

Porém, segundo estudos realizados, o povoamento do continente americano e, consequentemente, o Brasil, ocorreu aproximadamente ao final da última glaciação, ou seja, no término do Pleistoceno. As culturas provenientes deste período são comprovadamente anteriores há 12 mil anos AP.

Surge daí o embate entre os norte-americanos, propagadores do chamado modelo Clovis e os demais pesquisadores. Ao defenderem este modelo, a comunidade arqueológica estadunidense, ignora duas importantes informações que desde os anos 70 fazem parte do dia a dia dos arqueólogos sul-americanos: a primeira informação é de que em vários sítios arqueológicos na América do Sul encontram-se plenamente comprovadas datações no mínimo tão antigas quanto as da cultura Clovis e a segunda informação é de que tanto na América Central quanto na América do Sul não foi encontrado em nenhum sítio paleoíndio qualquer sinal das pontas acanaladas ou da exploração especializada da megafauna extinta como recurso alimentar.

Em se tratando de Brasil, segundo Ana Roosevelt, a presença de seres humanos na floresta amazônica é de aproximadamente 11.300 anos. Tal afirmação parte de suas pesquisas realizadas no abrigo de Pedra Pintada na cidade de Monte Alegre, no estado do Pará, e também na ilha de Marajó.

Continuando nosso retrocesso na (pré) história do Brasil, podemos citar os artefatos de pedra retocados pelo homem encontrados no sítio arqueológico de Lapa do Boquete, no norte do estado de Minas Gerais, cuja datação remonta há aproximadamente 12 mil anos. Ainda no tocante a objetos lixados e polidos pelo homem, foram encontradas em escavações realizadas em Mato Grosso no ano de 1984, pelo casal Denis e Águeda Vialou, pingentes de ossos lixados e polidos pelo homem fornecendo datas de sua presença em até 25 mil anos.

Porém o sítio arqueológico brasileiro que mais causou polêmica é o do Boqueirão da Pedra Furada, localizado na Serra da Capivara, no município de São Raimundo Nonato, no sudoeste do Piauí. Foi em uma gruta que Niéde Guidon encontrou, além de centenas de pinturas rupestres, pedaços de carvão que podem ter sido resultantes de uma fogueira acesa há mais de 50 mil anos. É bem verdade que grande parte da comunidade cientifica não aceita tal datação partindo do pressuposto de que os pedaços de carvão encontrados por Niéde Guidon são provenientes de queimadas naturais e não de fogueiras feitas pelos antigos caçadores primitivos.

No sítio arqueológico de Lapa Vermelha IV, em Pedro Leopoldo, no estado de Minas Gerais, entre os anos de 1974 e 1976, uma Missão Arqueológica Franco-Brasileira, liderada por Annette Lamming-Emperaire, obteve evidências de que haveria a presença de homens no Brasil anterior a 11 mil anos. Annette e sua equipe de arqueólogos encontraram o crânio de uma mulher, que anos mais tarde, seria batizada com o nome de Luzia.

A surpresa não esta relacionada a antiguidade do achado, pois segundo as datações, Luzia teria morrido há cerca de 11.500 anos, se enquadrando dentro da hipótese Clovis mencionada no inicio deste trabalho, esta relacionada ao estudo liderado por Walter Neves em 1988 e que caiu como uma bomba sobre as interpretações tradicionais sobre o povoamento da América.

Segundo muitos arqueólogos, e principalmente os norte-americanos, os primeiros homens que teriam chegado ao continente americano foram os mongóis, denominação dada aos grupos originários da Ásia Central. Estes grupos teriam passado pelo Estreito de Bering, no Alasca, há cerca de 11 mil anos.

Walter Neves, após ter estudado o crânio encontrado no sítio arqueológico de Lapa Vermelha, constatou que o fóssil tinha características físicas mais próximas dos povos oriundos da África e da Austrália do que da Ásia. Neves e seus colaboradores também concluíram que havia ocorrido outra onda migratória para as Américas pelo Alaska, porém há pelo menos 15 mil anos.

Em 1999, foi feita uma reconstituição da face do crânio de Luzia pelo Dr. Richard Neave, da University of Manchester, na Inglaterra, e que mostrou de forma complementar e independente aos estudos realizados por Walter Neves, que Luzia apresenta morfologia diferente dos ameríndios atuais, sendo mais semelhante aos indígenas australianos ou africanos.

Há muito que se descobrir e se estudar sobre a (pré) história do Brasil, e a arqueologia é a fonte de conhecimento que permitirá reconstituir a história dos nossos primitivos habitantes. Certamente os vestígios descobertos através das escavações darão testemunho da origem e da evolução da cultura dos povos que viveram em nosso território antes da chegada de Pedro Álvares Cabral.

Homem (Pré) Histórico ou Índio




Para alguns estudiosos no assunto, os indígenas brasileiros, muito provavelmente se fixaram no que é hoje chamado Brasil, no estado neolítico, ou seja, encontravam-se inseridos no grupo de menor desenvolvimento cultural, inclusive desconhecendo a escrita.

No final do século XV, quando os europeus chegaram a América, encontraram com povos em diferentes estágios de evolução.  Por um erro, os habitantes do Novo Mundo foram chamados de índios, por terem sido julgados pertencerem a Índia. Procurou-se corrigir o equívoco, dando-lhes o nome de ameríndios e às novas terras de Índias Ocidentais.  Os ancestrais desses “índios” haviam se estabelecido no continente através de diversificadas ondas migratórias.

Calcula-se que, quando Pedro Álvares Cabral chegou ao litoral do Brasil, aqui encontrou vivendo em torno de 6 milhões de “índios”. A terra encontrada pelos portugueses em 22 de abril de 1500 refletia um grande cenário de natureza exuberante e quase virgem.  Porém, já se encontrava habitada. Os especialistas, tomando por base os estudos de Karl von den Steiner, consideram a existência de quatro grandes nações: tupis-guaranis, jês, caribes e aruaques, e vários grupos menores.

O próprio nome Brasil, dado pelos portugueses em função das árvores que existiam em grande abundância pelo litoral e que passou a ser o principal produto comercial nos trinta primeiros anos após a sua chegada, não existia para os diferentes grupos que aqui viviam.  Para uns aqui é Pindorama, a terra das palmeiras, já para outros, é Piratininga, assim por diante.  A nação de um índio é a sua terra, é a área que ele vive com o seu povo.

Segundo o mito das várias tribos Timbira, do grupo Jê, que habitam o sul do Maranhão e o norte de Goiás, diz que “antigamente não havia civilizados, mas apenas índios”.  Este “antigamente” vai muito além do que possamos imaginar, visto que as informações arqueológicas que dispomos nos permite dizer que há mais de 11 mil anos atrás grupos humanos já habitavam a parte sul-americana do que hoje chamamos de Brasil. Tal afirmativa parte de machados, martelos de pedra, pedaços de cristal de quartzo e ornamentos de conchas encontradas na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais.

Contrariando o nosso primeiro parágrafo, segundo alguns especialistas, o desenvolvimento cultural dos habitantes do Brasil antes do descobrimento foi muito maior do que a maioria dos brasileiros possa imaginar. Segundo o artigo de Pablo Nogueira, os índios brasileiros, antes da chegada de Cabral, usavam roupas, praticavam comércio e tinham grandes e complexas aldeias.

Ainda, segundo Pablo Nogueira, novas pesquisas em história, arqueologia, botânica e ecologia apontam para aldeias com grande extensão, chegando algumas terem quilômetros de extensão e populações que beiravam a soma de milhares.  Continuando o relato, alguns habitantes usavam roupas e faziam expedições comerciais trocando produtos a centenas de quilômetros de distância e até às vezes alteravam a vegetação da floresta.  

Tal afirmação não surgiu do nada, ela parte de árduos estudos e pesquisas realizadas pelo historiador Antônio Porro, da Universidade de São Paulo, que durante duas décadas esmiuçou documentos sobre a história desses índios escrita pelos mesmos europeus que nos séculos  XVI e XVII, navegaram pelo Rio Amazonas em busca de terras e tesouros mitológicos, como o El Dorado, e que mais tarde os levariam à ruína.  Tais expedições não encontraram as riquezas lendárias, e acabaram por trazer preciosos relatos sobre o que encontraram.

Porém existem teses contrárias que segundo os arqueólogos mais tradicionais, a existência de grandes sociedades nativas seria impossível e não passariam de exagero, na melhor das hipóteses, dos relatos dos viajantes.

Esta visão não é recente, vem desde os anos de 1960, quando esteve em nosso país a arqueóloga americana Betty Meggers. Ela escreveu um livro: “Amazônia: Homem e cultura num falso paraíso”, através do qual argumenta que por não serem fáceis as condições de vida na floresta tal situação impedira o surgimento de grandes populações nativas.  Segundo ela os primitivos habitantes (índios) não possuíam chefia centralizada e nem habitavam por muitos anos num mesmo lugar.

Entretanto, conforme descreveu Michael Heckenberger: “a chefatura marajoara, que floresceu na ilha de Marajó de cerca de 400 dC até 1300 dC, pode ter sido a mais desenvolvida das sociedades que habitavam a várzea”. É especialmente reconhecida por sua elaborada cerâmica pintada e pelos sambaquis maciços construídos à mão, sobre os quais se erguiam aldeias e cemitérios com urnas.  Explorações recentes, em particular as pesquisas dirigidas pela arqueóloga Anna Roosevelt, demonstraram que essa cerâmica elaborada, do tipo Horizonte Policrômico, apareceu primeiro na foz do rio Amazonas e depois se espalhou para oeste, contrariando a hipótese anterior segundo a qual teriam derivado de civilizações andinas.

Completamente segregados na imensidão das florestas, os “índios” brasileiros não lograram nunca obter alto padrão de cultura como o dos Incas, Maias e Astecas, porém dentro de suas limitadas condições conseguiram passar para as gerações futuras o seu legado, principalmente no que se refere à alimentação, no asseio (banhos no rio) e na presença constante de elementos linguísticos indígenas na toponímia, dentre outros.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Sabe com quem está falando?
Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil




Roberto DaMatta, este grande estudioso dos hábitos e costumes do nosso Brasil, procura neste capitulo do seu livro, fazer uma análise do tão conhecido brado: “você sabe com quem está falando?”

A pergunta “você sabe com quem está falando?” é uma ação extrema e corrompida do famoso “jeitinho brasileiro”, e até certo ponto antipática que surge quando determinado cidadão que possui algum tipo de relacionamento com alguma figura importante, que goza de importância ou status social, seja ele político, militar, governamental ou mesmo civil (advogado, médico, etc.), se acha no direito de citar em seu favor esta sua relação ou familiaridade para ultrapassar algum obstáculo, e com essa atitude agir com violência contra a possível repressão por ele sofrida, gerando uma situação conflitante, embaraçosa e desconfortável.

Percebemos na narrativa dele, dilemas entre autoritarismo, hierarquia e violência existentes na sociedade brasileira, e a busca de um ambiente harmônico, democrático e sem conflitos. Como toda situação de embate e disputa, existe um estado de tensão entre os protagonistas que conduz a uma série de rituais e mitos dramatizando as principais alternativas para a solução do problema.

O autoritarismo e a hierarquia da nossa sociedade, segundo Roberto DaMatta, esta definido em dimensões distintas, uma delas é a existência de uma ordem formal apoiada no status e no prestígio social bem delimitado, onde todos sabem o lugar que ocupam e onde não se verifica conflitos. Já a outra consiste na existência da oposição entre o “mundo das pessoas”, socialmente reconhecidas com seus privilégios e direitos, e a esfera igualitária dos indivíduos, onde as leis impessoais são usadas como objeto de controle e submissão.

No texto existem “dois mundos” que não se misturam entre si: o mundo da casa e o mundo da rua. No mundo da casa, em geral reina a igualdade, a paz e a harmonia, em contraste como mundo da rua, onde os indivíduos brigam constantemente pela vida. No mundo da rua, as pessoas se utilizam do status das pessoas das classes dominantes para conduzirem e reduzirem os indivíduos às leis: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”. Perante a lei todos são iguais, hierarquicamente não, pois a lei é subjetiva, eis a questão.

Ele relata diversos episódios nos quais as pessoas se favorecem do status de outras pessoas para se favorecerem, reduzirem ou colocarem no seu devido lugar certos indivíduos supostamente usurpando o direito delas. Menciona também que você “sabe com quem esta falando?” poderá ser utilizado por inferiores estruturais que se utilizam da posição de seu patrão ou comandante para inferiorizar outro indivíduo que, em comparação, seria igual.

Ao utilizar-se do artifício da célebre frase aqui discutida, o individuo que se considera agredido passa a ser o agressor, deixando de ser desconhecido e mais fraco e tornando-se mais conhecido e mais forte. Vemos que tal expressão permite passar de um estado a outro: do anonimato a uma posição de reconhecimento; de uma posição igualitária a uma posição hierarquizada, ou seja, estabelece a pessoa onde antes se encontrava um indivíduo, pois somente os indivíduos frequentam as delegacias, os tribunais, as filas nos hospitais públicos.

DaMatta relaciona a violência urbana e os meios de transportes. Na época em ele escreveu este ensaio, a figura do bandido, dono do morro ou da “comunidade” em que ela domina não estava tão definida como atualmente está, o que certamente o levaria a relacioná-lo em seu estudo, pois se alguns anos atrás a pergunta “sabe com quem está falando”, remetia à pessoas de “alto grau” de cultura e poder, hoje em dia poderá ser utilizada como forma de intimidação por parentes, amigos ou integrantes de quadrilhas de marginais ou de contraventores, que ao se aproveitarem de sua proximidade com esses chefões tentam obter privilégios pessoais sobre os outros indivíduos que compõem a nossa atual sociedade.